a pensão

o vinho? horroroso! mas o que tinha pra beber. e eu precisava me concentrar e escrever. esquecer do frio terrível do quartinho antes que os dedos congelassem. no quarto há uma cama de solteiro, um criado mudo ao lado dela, a janela ao lado dele, o aquecedor abaixo dela, uma mesa ao lado da porta e finalmente um guarda roupas à esquerda de quem entra.

a pensão é bem humilde. a senhoria cobra 100 por semana com o café da manhã. pão com margarina, café preto ou com leite. o quarto e as roupas de cama são limpos uma vez a cada quinze dias e essa limpeza é incluída no valor. o toalhete é coletivo. vez e outra tem fila e constrangimento, pois a porta não é grossa o suficiente. é comum ouvir ruídos e sentir odores. o pagamento é adiantado, paga e dorme, mas os meus contos não estão sendo aceitos nos diários. estou em débito. há um mês que não publicam nada. falam em cortar despesas. ainda tenho algum guardado, mas se pagar pelo quarto morro de fome, ou viro mendigo de vez. a velha dona da pensão sabia disso. às vezes, fazia vistas grossas, mas noutras era como um cão raivoso atrás de um ladrão. mais dia menos dia ela me expulsa daqui. ela também exigia que seus hóspedes mantivessem a ordem e os bons costumes da moral.

porém, uma das moças da pensão ganhava a vida num cabaré da cidade. andava sempre muito bem vestida. vestidos finos, sapatos caros. dizia, à velhota, que era cuidadora no hospital das graças. em parte não mentia. afinal era cuidadora mesmo, mas dos frequentadores do local. poderia, se quisesse, arranjar um bom partido lá, mas parecia gostar da vida que tinha. sei disso porque a vi entrando no bordel uma noite dessas. isso no mês passado. como aparentemente tem dinheiro, não entendo porque vive aqui nesta bagunça. 

um outro cara, hóspede da pensão, era tipo malandrão. o quarto dele fica ao lado do meu. vive dando golpes. caçando viúvas ou meliantes do mesmo naipe para golpes maiores. nas ruas é conhecido como gaipora, mas seu nome é baltazar. foi o tobias, dono do boteco que fica a duas quadras ao norte da pensão que me falou. foi lá que comprei o vinho. não sei como a velha gertha não desconfia dessa gente. vai ver ela sabe e finge que não.

dos oito quartos existentes, seis estavam ocupados. dois estavam em obras e o barulho era insuportável. mal o café era servido, o caos era lançado. um convite para que todos se pusessem de lá para fora. exceto eu. meu escritório é no quarto. a velha herdou o casarão. era uma família de imigrantes. seu pai e sua mãe, mais dois irmãos. há rumores que o velho pai dela é foragido dos tempos da guerra. morreu já tem dez anos. foi quando ela abriu a pensão.

e em dias como este, quando está muito frio, não saio à noite. aproveito o silêncio para escrever. menos mal que tem o vinho. por pior que seja, espero que me aqueça, pois o aquecedor do quarto não vence o frio que faz.

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