o atropelamento

Já não lembro mais de como eram os canteiros. Se era grama ou calçada. Os automóveis amontados um sobre o outro tomam conta do lugar. Estacionamento grátis! Engraçado que, lembro perfeitamente do dia do atropelamento, praticamente, no mesmo lugar; trinta anos atrás. Veio do nada, em alta velocidade. Furou a sinaleira! E a Honda Sahara 1993 e de cor azul bateu no meio da Monark que nem era minha... Era um domingo. Dia de brique da praça. Voei uns metros adiante, mas não quebrei nenhum um osso do corpo quando aterissei no chão. Nenhum arranhão! Mais sorte que juízo. Eu ri e saí da cena rapidamente. O cara da moto, usava cabelo comprido. Uma camiseta branca, bermuda e chinelo de dedo. Sem capacete. Era permitido andar assim. Anos depois contruíram uma rotatória na avenida. Hoje, outra vez, fazem obras no lugar. A quadra de piche, de areia... tudo destruído. E a porvoadeira da função cobre lentamente cada carro ali parado. Não somente eles. Mas a mesa do botequim. A senhoria não percebendo a sujeira depositou o prato feito sobre ela. É que nunca peço com bebida... vai ver é por isso. Chinelagem, gera chinelagem. Enquanto isso, os dois extraterrestres de concreto analisavam cada movimento, cada transeunte que passava. Aguardavam, talvez, a nave mãe chegar. Mas recém é quinta-feira.

A bem da verdade, eu ri de apavoramento. E não me caguei por não ter a merda pronta. Por outro lado, imagine que cena lastimável não ter quebrado um único osso, mas ter se cagado? Ali no centrão! Diriam as manchetes do jornal escolar no outro dia: ALUNO DA SEGUNDA SÉRIE ATROPELADO PASSA BEM, MAS SAI TODO CAGADO E SEM NENHUM OSSO QUEBRADO! É UM CAGADO MESMO!

Que horror. De verdade. Agradeço demais aos céus por não ter me cagado... pois para sempre eu ficaria marcado. Até o ginásio. Meu apelido teria sido Cagado, ou Cagão. E as meninas que já não me notavam muito, notariam muito menos.

Quando chegamos na casa do Alencar, foi preciso contar tudo. Pois o quadro da magrela ficou torto. Todo fodido. E perdera o único freio que tinha. Quebrou a manete. Teriam que consertar. Gastar dinheiro. Mas mesmo falando a verdade, a dona Cibila não acreditou na história da moto. Nem  a mãe acreditou... ainda me ameaçou, falando em castigo por eu ter mentido. É simples. Eu não tinha nenhum machucado.

Às vezes penso, que eu deveria ter quebrado pelo menos um braço. E aí não passaria por mentiroso. E na escola diriam o seguinte: ALUNO DA SEGUNDA SÉRIE É ATROPELADO POR MOTO, QUEBRA UM BRAÇO, MAS SOBREVIVE. É QUASE UM HERÓI! E se assim tivesse sido todas as meninas da segunda série, das três turmas, as mais bonitas e as feias também, todas elas, talvez até as do terceiro e do quarto ano desenhariam seus nomes com corações no gesso do braço. Era isso que elas faziam quando alguém se quebrava. Por fim, as professoras me bajulariam e eu poderia sair a qualquer momento para ir beber água ou ir no banheiro para mijar e eu seria o guri mais afagado do primário.

Como não teve, nem merda e nem osso quebrado, nada disso aconteceu. E assim a vida seguiu no mais puro dos anonimatos como que a ocorrência nunca tivesse existido. E essa é uma das verdades que também tem perna curta.


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